As palavras dos outros
Era a noite de primeira oitava de 1973, tinha eu 10 anos.
Os pais tinham combinado com os tios e o avô que, passada a consoada na casa deles, o jantar da primeira oitava seria na nossa casa.
Vivíamos com a avó paterna, mulher rural de ideias fortes e vontade férrea. A austeridade da avó Ricarda lia-se-lhe no nome e nas rugas do rosto. Não a conheci em vida do avô Ferreira e isso poderá ter feito a diferença: a morte do companheiro duma vida e a partida dos cinco filhos para o Brasil sulcaram-lhe na cara os vincos que sempre lhe conheci.
O tio Jaime vivia na Pena, na casa citadina do avô Leonel, o patriarca. O avô era maiúsculo na estatura, na pose e na atitude. Era o nosso farol. Também do tio Jaime, como seria normal, mas até do pai. "Benquisto industrial", feitor dos condes Torre Bela e homem insigne do Arco da Calheta e do concelho onde se exilou. O avô era também já viúvo e passava alguns dias efémeros no Funchal, o ano inteiro era no Arco, com a sua/nossa fiel Zulmira. Fiel das sopas, dos cheiros, do jardim do tanque dos peixes e das semilhas a grelar na loja. Os outros irmãos da mãe não estavam cá. Na ilha, quem não está, não é. Sente-se mais a ausência. É uma meia-morte. Às vezes chegavam, vinham do ultramar. Estavam vivos, afinal.
Mas mesmo quando estavam todos, o pai e o tio Jaime sempre se ligaram mais. As gargalhadas eram gémeas, encaixavam-se uma na outra. As anedotas eram desfiadas ao desafio…
O jantar tinha sido o delicioso pastelão de bacalhau ou a carne assada especial da mãe. Jogavam agora ao cassino com o avô e os meus dois irmãos. A mãe, a tia e a Zulmira fariam o proverbial croché. A minha prima e eu éramos espectadores atentos de toda a cena.
A avó já tinha subido, não se sentia confortável no papel de anfitriã, de bom grado deixava esse papel à nora. Não socializava, não compreendia nem via naqueles serões grande valor, e "amanhã há trabalho, cedo, na fazenda". Beberricavam eles os digestivos, fumavam algum charuto ou os "DuMaurier" do pai para as ocasiões e por entre esgares de satisfação ou desgosto por cada "mão" de cartas que saía, contavam-se anedotas ou comentavam-se notícias. O pai, militar de carreira, contava os 3 meses para passar à reserva e às paciências sem saber que estávamos à beira da revolução…
E o serão assim se esgotou. Despediram-se os convivas, os abraços e beijinhos, os casacos vestidos, "agasalhem-se, a noite está fresca". A mãe beijou o tio e o avô, "boa noite!".
Entraram naquele carro preto e arredondado. Era um Peugeot 403. O banco frontal era corrido e cheirava muito a cabedal. As portas batiam com um estrondo metálico. O tio fez descair aquela banheira de 2 toneladas e afastou-a da parede para o avô entrar. Gemeram todas as dobradiças e os calços de travão, a porta bateu novamente e lá foram. Acenámos, o cheiro e o fumo do gasóleo desvaneceram-se e as luzes vermelhas dos farolins traseiros desapareceram na esquina da venda.
Voltámos para dentro. A mãe arrumava a sala, o pai fazia uma última paciência. Desligada a televisão, subi as escadas de madeira pé ante pé, para não acordar a avó. "Boa noite, avó", baixinho, não fosse estar acordada e aperceber-se da falta de respeito. Cheguei ao quarto e sentei-me na borda da cama a desamarrar os sapatos…
Havia no quarto uma penteadeira de estilo moderno, em mogno escuro com remates e acessórios em Art Déco e puxadores em vidro esverdeado. O exótico do conjunto era o seu enorme espelho circular, excêntrico, sem aros ou molduras, deveria ter aí um metro e vinte de diâmetro.
Disseram depois que tinham chegado a casa, que o tio tinha parado o enorme Peugeot no declive da Pena; deixou sair o avô, a tia, a prima e a Zulmira e encostou as 2 toneladas de ferro milimetricamente no seu lugar. Saiu do carro, bateu a estrondosa porta, o casaco balançou, a chave caiu-lhe da mão e o corpo pesado do meu tio tombou estatelado no alcatrão. Tinha tido o seu 3.º ataque cardíaco. Morreu ali, passavam minutos da meia-noite.
À mesma hora, no meu quarto, eu desamarrava os sapatos. Com um estoiro, o espelho da penteadeira estalou e abriu-se em dois de cima a baixo.
Só mais tarde percebi que o espírito brincalhão do tio Jaime tinha vindo, com o estardalhaço do costume, pregar a sua última partida.