Em resposta a (mais) um Desafio da Hipátia (escolher o post que salvaríamos em caso de incêndio no blog) enviei este texto, um dos primeiros que escrevi minimamente dignos desse nome.
O que aqui se descreve aconteceu e marcou-me. Daí o "re-post".
Forgive me Father for I have sinned. It's been 30 years since my last confession.
Chamava-se Manuel. Devia ser novo ainda na altura, talvez trintas e tantos, alto, bem-parecido, simpático, acessível, sempre disponível e bom ouvinte e ainda por cima, Padre.
Todos gostavam do Padre Manuel, novos e velhos, era disputado pelas famílias influentes para os jantares, recorriam a ele para tudo, opinião ou obra, nunca tanto se fez na freguesia inteira, nunca tanto bailarico se organizou, nunca houve tanta moça disponível para catequizar ou fazer a limpeza da sacristia ou paramentos.
O meu primeiro filme projectado vi-o no salão paroquial. Depois de uma festa qualquer que meteu farto almoço, seguiu-se a exibição de uma fita. Seria de esperar que escolhesse uma qualquer coboiada, mas não, escolheu O Rapaz dos Cabelos Verdes de Joseph Losey.
Também na hora da confissão podíamos contar com ele. Estar à espera em silêncio, a ensaiar a lista de pecados, era angustiante. Depois entrava-se na sacristia, ele estava à espera, sorria.
"Então, conta lá..." Puff, mente em branco, gaita, nem um pecadinho, ái rápido, alguma coisa...
"... aborreceste a tua avó?" Sim! Isso, isso...!
"... não a ajudaste em casa?" Exactamente!
"... não tens estudado nem feitos os trabalhos da escola?" Mais, mais...
"... e disseste palavras feias?" Merda! disse merda!
Saía uma tonelada de cima, ele sabia tudo de cor e salteado, conhecia-nos por dentro e por fora e garantia uma safa divina! Que mais se pode pedir de um padre aos 7 anos?
Mas nada se mantém eternamente na mó de cima e o estado de graça do Padre Manuel não era diferente. Espíritos mesquinhos começaram a espalhar frases maldosas aqui e ali, quem conta um conto acrescenta um ponto e num ápice passou de santo a crucificado na praça pública.
A gota de água veio na forma de uma criança a quem o Padre Manuel deu o seu nome. Escândalo, escárnio, maldizer, ouro sobre azul para a cambada de hipócritas ingratos e de memória curta que conseguiu assim expulsá-lo da freguesia com o amém dos superiores hierárquicos. Foi enviado algures para os subúrbios de Lisboa, onde aparentemente não fazia diferença ser padre perfilhador de crianças.
Ele foi o primeiro e último padre com P grande que conheci e marcou a minha primeira desilusão com a Igreja. Não sei o que foi feito dele, se continuou a espalhar a "palavra de Deus" com o entusiasmo contagiante que o caracterizava e arrastava tudo e todos. Espero apenas que não seja só amargura o que sente quando ocasionalmente se lembrar de nós.