As palavras dos outros
... mais precisamente as palavras do homem da casa.
Ouvi esta história uma e outra vez magistralmente contada por ele, com uma riqueza de pormenores que me levavam até 1973.
Vai ser lida n' "A História Devida" no dia 8 de Setembro.
A despedida
Era a noite de primeira oitava de 1973, tinha eu 10 anos.
Os pais tinham combinado com os tios e o avô que, passada a consoada na casa deles, o jantar da primeira oitava seria na nossa casa.
Vivíamos com a avó paterna, mulher rural de ideias fortes e vontade férrea. A austeridade da avó Ricarda lia-se-lhe no nome e nas rugas do rosto. Não a conheci em vida do avô Ferreira e isso poderá ter feito a diferença: a morte do companheiro duma vida e a partida dos cinco filhos para o Brasil sulcaram-lhe na cara os vincos que sempre lhe conheci.
O tio Jaime vivia na Pena, na casa citadina do avô Leonel, o patriarca. O avô era maiúsculo na estatura, na pose e na atitude. Era o nosso farol. Também do tio Jaime, como seria normal, mas até do pai. "Benquisto industrial", feitor dos condes Torre Bela e homem insigne do Arco da Calheta e do concelho onde se exilou. O avô era também já viúvo e passava alguns dias efémeros no Funchal, o ano inteiro era no Arco, com a sua/nossa fiel Zulmira. Fiel das sopas, dos cheiros, do jardim do tanque dos peixes e das semilhas a grelar na loja. Os outros irmãos da mãe não estavam cá. Na ilha, quem não está, não é. Sente-se mais a ausência. É uma meia-morte. Às vezes chegavam, vinham do ultramar. Estavam vivos, afinal.
Mas mesmo quando estavam todos, o pai e o tio Jaime sempre se ligaram mais. As gargalhadas eram gémeas, encaixavam-se uma na outra. As anedotas eram desfiadas ao desafio…
O jantar tinha sido o delicioso pastelão de bacalhau ou a carne assada especial da mãe. Jogavam agora ao cassino com o avô e os meus dois irmãos. A mãe, a tia e a Zulmira fariam o proverbial croché. A minha prima e eu éramos espectadores atentos de toda a cena.
A avó já tinha subido, não se sentia confortável no papel de anfitriã, de bom grado deixava esse papel à nora. Não socializava, não compreendia nem via naqueles serões grande valor, e "amanhã há trabalho, cedo, na fazenda". Beberricavam eles os digestivos, fumavam algum charuto ou os "DuMaurier" do pai para as ocasiões e por entre esgares de satisfação ou desgosto por cada "mão" de cartas que saía, contavam-se anedotas ou comentavam-se notícias. O pai, militar de carreira, contava os 3 meses para passar à reserva e às paciências sem saber que estávamos à beira da revolução…
E o serão assim se esgotou. Despediram-se os convivas, os abraços e beijinhos, os casacos vestidos, "agasalhem-se, a noite está fresca". A mãe beijou o tio e o avô, "boa noite!".
Entraram naquele carro preto e arredondado. Era um Peugeot 403. O banco frontal era corrido e cheirava muito a cabedal. As portas batiam com um estrondo metálico. O tio fez descair aquela banheira de 2 toneladas e afastou-a da parede para o avô entrar. Gemeram todas as dobradiças e os calços de travão, a porta bateu novamente e lá foram. Acenámos, o cheiro e o fumo do gasóleo desvaneceram-se e as luzes vermelhas dos farolins traseiros desapareceram na esquina da venda.
Voltámos para dentro. A mãe arrumava a sala, o pai fazia uma última paciência. Desligada a televisão, subi as escadas de madeira pé ante pé, para não acordar a avó. "Boa noite, avó", baixinho, não fosse estar acordada e aperceber-se da falta de respeito. Cheguei ao quarto e sentei-me na borda da cama a desamarrar os sapatos…
Havia no quarto uma penteadeira de estilo moderno, em mogno escuro com remates e acessórios em Art Déco e puxadores em vidro esverdeado. O exótico do conjunto era o seu enorme espelho circular, excêntrico, sem aros ou molduras, deveria ter aí um metro e vinte de diâmetro.
Disseram depois que tinham chegado a casa, que o tio tinha parado o enorme Peugeot no declive da Pena; deixou sair o avô, a tia, a prima e a Zulmira e encostou as 2 toneladas de ferro milimetricamente no seu lugar. Saiu do carro, bateu a estrondosa porta, o casaco balançou, a chave caiu-lhe da mão e o corpo pesado do meu tio tombou estatelado no alcatrão. Tinha tido o seu 3.º ataque cardíaco. Morreu ali, passavam minutos da meia-noite.
À mesma hora, no meu quarto, eu desamarrava os sapatos. Com um estoiro, o espelho da penteadeira estalou e abriu-se em dois de cima a baixo.
Só mais tarde percebi que o espírito brincalhão do tio Jaime tinha vindo, com o estardalhaço do costume, pregar a sua última partida.
Era a noite de primeira oitava de 1973, tinha eu 10 anos.
Os pais tinham combinado com os tios e o avô que, passada a consoada na casa deles, o jantar da primeira oitava seria na nossa casa.
Vivíamos com a avó paterna, mulher rural de ideias fortes e vontade férrea. A austeridade da avó Ricarda lia-se-lhe no nome e nas rugas do rosto. Não a conheci em vida do avô Ferreira e isso poderá ter feito a diferença: a morte do companheiro duma vida e a partida dos cinco filhos para o Brasil sulcaram-lhe na cara os vincos que sempre lhe conheci.
O tio Jaime vivia na Pena, na casa citadina do avô Leonel, o patriarca. O avô era maiúsculo na estatura, na pose e na atitude. Era o nosso farol. Também do tio Jaime, como seria normal, mas até do pai. "Benquisto industrial", feitor dos condes Torre Bela e homem insigne do Arco da Calheta e do concelho onde se exilou. O avô era também já viúvo e passava alguns dias efémeros no Funchal, o ano inteiro era no Arco, com a sua/nossa fiel Zulmira. Fiel das sopas, dos cheiros, do jardim do tanque dos peixes e das semilhas a grelar na loja. Os outros irmãos da mãe não estavam cá. Na ilha, quem não está, não é. Sente-se mais a ausência. É uma meia-morte. Às vezes chegavam, vinham do ultramar. Estavam vivos, afinal.
Mas mesmo quando estavam todos, o pai e o tio Jaime sempre se ligaram mais. As gargalhadas eram gémeas, encaixavam-se uma na outra. As anedotas eram desfiadas ao desafio…
O jantar tinha sido o delicioso pastelão de bacalhau ou a carne assada especial da mãe. Jogavam agora ao cassino com o avô e os meus dois irmãos. A mãe, a tia e a Zulmira fariam o proverbial croché. A minha prima e eu éramos espectadores atentos de toda a cena.
A avó já tinha subido, não se sentia confortável no papel de anfitriã, de bom grado deixava esse papel à nora. Não socializava, não compreendia nem via naqueles serões grande valor, e "amanhã há trabalho, cedo, na fazenda". Beberricavam eles os digestivos, fumavam algum charuto ou os "DuMaurier" do pai para as ocasiões e por entre esgares de satisfação ou desgosto por cada "mão" de cartas que saía, contavam-se anedotas ou comentavam-se notícias. O pai, militar de carreira, contava os 3 meses para passar à reserva e às paciências sem saber que estávamos à beira da revolução…
E o serão assim se esgotou. Despediram-se os convivas, os abraços e beijinhos, os casacos vestidos, "agasalhem-se, a noite está fresca". A mãe beijou o tio e o avô, "boa noite!".
Entraram naquele carro preto e arredondado. Era um Peugeot 403. O banco frontal era corrido e cheirava muito a cabedal. As portas batiam com um estrondo metálico. O tio fez descair aquela banheira de 2 toneladas e afastou-a da parede para o avô entrar. Gemeram todas as dobradiças e os calços de travão, a porta bateu novamente e lá foram. Acenámos, o cheiro e o fumo do gasóleo desvaneceram-se e as luzes vermelhas dos farolins traseiros desapareceram na esquina da venda.
Voltámos para dentro. A mãe arrumava a sala, o pai fazia uma última paciência. Desligada a televisão, subi as escadas de madeira pé ante pé, para não acordar a avó. "Boa noite, avó", baixinho, não fosse estar acordada e aperceber-se da falta de respeito. Cheguei ao quarto e sentei-me na borda da cama a desamarrar os sapatos…
Havia no quarto uma penteadeira de estilo moderno, em mogno escuro com remates e acessórios em Art Déco e puxadores em vidro esverdeado. O exótico do conjunto era o seu enorme espelho circular, excêntrico, sem aros ou molduras, deveria ter aí um metro e vinte de diâmetro.
Disseram depois que tinham chegado a casa, que o tio tinha parado o enorme Peugeot no declive da Pena; deixou sair o avô, a tia, a prima e a Zulmira e encostou as 2 toneladas de ferro milimetricamente no seu lugar. Saiu do carro, bateu a estrondosa porta, o casaco balançou, a chave caiu-lhe da mão e o corpo pesado do meu tio tombou estatelado no alcatrão. Tinha tido o seu 3.º ataque cardíaco. Morreu ali, passavam minutos da meia-noite.
À mesma hora, no meu quarto, eu desamarrava os sapatos. Com um estoiro, o espelho da penteadeira estalou e abriu-se em dois de cima a baixo.
Só mais tarde percebi que o espírito brincalhão do tio Jaime tinha vindo, com o estardalhaço do costume, pregar a sua última partida.
5 comentários:
olá Uxka! Já tinha saudades dos teus posts. Este eriçou-me os pêlos da nuca.
beijo da Maria
E foi assim. Assim mesminho, que eu estava lá!
(Contaste tão bem, mano pequeno!)
Olá passei para te convidar a dares uma espreitadela ao meu blog.
Maria, 'inda bem que gostastes... o homem cá de casa tem muitos talentos, uns mais escondidos do que outros.
Mana... xx
Olá Angelboop... há tempos que não passo por tua casa, realmente... até já.
Rapariga, fossem todos assim, brincalhões ;)
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