14 junho 2005

Dois homens

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe!


Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!


Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!


Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.


Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!


Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos...


Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!


Olha - queres ouvir-me? -,
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;


ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;


ainda oiço a tua voz:
"Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal..."


Mas - tu sabes! - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu...


Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.


Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...


Boa noite. Eu vou com as aves!

Poema à mãe
Eugénio de Andrade

(afofando um molho de nuvens)
- Eugénio! ...vem sentar-te aqui, a vista é boa.
- Obrigado, estava a precisar. Que caminhada.

Ajeitaram-se no banco, pernas a baloiçar sobre o abismo.
Pássaros, mais que muitos, esvoaçavam brincalhões passando a uma mão de alcance.
- Ouve lá, esse poema à mãe é um bocado lamechas, não?
- Então Álvaro! Se não for com os nossos amores, com quem mais podemos ser lamechas?
As sobrancelhas fartas subiram num trejeito concordante.
Olhando o outro nos olhos.
- Não esperava tal companhia.

- Também não.
Sorriram os dois.

- Está na hora?
O outro assentiu.
E foram com as aves.

Fade out.

São 14.11 e nós continuamos por cá, até ver.

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